O negro escravizou o negro e vendeu pro branco. Por quê?
Atualizado: 21 de nov. de 2022

Atenção: Muitas pessoas podem vir a compartilhar esse texto sem ler até o final. Esse texto NÃO defende que a culpa pela escravidão seja dos povos africanos. Porém contém muita informação importante para você que pensa assim.
Uma coisa que eu percebi tarde demais na minha vida, é que estudar história exige tanto raciocínio lógico quanto estudar ciências exatas. Eu aprendi relativamente cedo que matemática é muito mais do que simplesmente decorar as coisas e conseguir repetir depois na prova.
Para contextualizar um pouco, eu estou nesse momento tentando sair da minha bolha das redes sociais. Por isso recentemente eu desbloqueei um bocado de gente que eu tinha bloqueado, segui quem eu tinha deixado de seguir, e estou fazendo o possível para consumir, criticamente, tanto conteúdo de pessoas com as quais eu tendo a concordar, quanto de pessoas que eu completamente discordo. Eu não vou mentir, tem dado muito trabalho e exige uma certa dose de paciência. Apesar de querer ser uma pessoa melhor, minha prioridade ainda é continuar a ser uma pessoa mentalmente saudável.
Enfim, contexto dado, eis que me aparece recentemente um vídeo do Mr. Catra dando entrevista na rádio Jovem Pan. Era apenas um trecho de pouco mais de um minuto, onde entre outras coisas, ele compartilha com a gente um conhecimento histórico:
“Na realidade não foi o branco que escravizou o preto. Foi o negro que escravizou o negro e vendeu pro branco na costa. Todo mundo sabe disso.”
Quando eu ouvi isso eu fiquei estarrecido. Mas não por causa dele. Por causa de mim mesmo. Porque o que ele disse é o fato histórico de que eu tenho conhecimento. Se hoje eu estivesse fazendo uma prova de história, e uma das perguntas fosse: “Como os europeus conseguiam os escravos na África?”, minha resposta seria que os escravos eram comprados dos próprios africanos, já que muitos povos já mantinham pessoas como escravas. Daí pronto, acabou. Mas será que acabou mesmo?
Grande parte do aprendizado vem de fazer as perguntas certas. E não estou falando das perguntas feitas pelo professor na prova, porque essas perguntas não servem para aprender, elas servem para avaliar. As perguntas que fazem um aluno aprender são aquelas que ele mesmo faz. O ato de fazer uma pergunta demonstra a curiosidade que aquele assunto despertou no aluno. A pergunta em si mostra qual é o nível de pensamento crítico que aquela pessoa tem sobre ele. E o ato de procurar uma resposta demonstra o interesse em realmente entender aquilo a fundo. Nesse meu pouco tempo de experiência na vida acadêmica, eu diria que fazer ciência é a arte de, para cada resposta, fazer mais mil perguntas.
Então eu resolvi fazer um pouco de ciência na questão da escravização dos negros. Eu já tinha uma pergunta: “Como os europeus conseguiam os escravos na África?”. Já dei uma resposta baseada no que eu aprendi na escola: os africanos já mantinham escravos e vendiam esses escravos para os europeus. Fim da história? Não. Para cada resposta eu deveria fazer mais mil perguntas. Mas não vou ficar até amanhã escrevendo esse texto, então vamos começar com mais três perguntinhas básicas que toda criança aprende a fazer desde que começa a falar: “Por quê?”. E é muito simples. É só fazer uma afirmação e adicionar essa pergunta no final. Olha só:
Muitos povos africanos mantinham escravos. Por quê?
Os africanos vendiam escravos para os europeus. Por quê?
Os europeus compravam escravos dos africanos. Por quê?
Agora vamos parar para uma pequena reflexão. Antes eu tinha uma afirmação, um fato histórico, algo que realmente aconteceu, algo que eu tinha conhecimento. Eu acabei de fazer três perguntas que, até antes da pesquisa que eu tive que fazer antes de escrever esse texto, eu não sabia responder. Na verdade eu poderia até responder, porém eu não teria certeza de nada. De fato, com um pouco de pesquisa percebi que minhas respostas estariam erradas, ou no mínimo muito incompletas. Poderia eu dizer que eu realmente sei do que eu estou falando?
Sim, eu sabia mencionar um fato histórico, mas eu não sabia explicar o seu contexto. Eu posso tirar uma conclusão justa sobre algo, mesmo sem saber o contexto disso? Deu pra entender a importância de se fazer perguntas? Deu para perceber que essas três perguntinhas tem um papel muito mais importante do que a minha resposta original? Bom, eu fiz uma pesquisa na internet e tentei respondê-las para que eu mesmo possa entender essa questão o máximo possível. A seguir está o resultado da minha pesquisa:
1. Muitos povos africanos mantinham escravos. Por quê?
Primeiramente eu queria fazer um pequeno esclarecimento: a África não é hoje e não era naquela época um povo só. Exatamente como a Europa, a América ou a Ásia, eram vários povos, de culturas, costumes, organizações, instituições e leis diferentes. Porém na nossa educação, o ensino de história é feito focado na história branca, na história da Europa. A grande maioria das pessoas sabem diferenciar os gregos dos romanos, britânicos de germânicos, portugueses de espanhóis. Todas nações europeias. Agora peça para alguém nomear dois povos da África. Muitas pessoas não vão citar nem mesmo os Egípcios, já que foram uma civilização antiga muito avançada que gerou grandes contribuições em muitas áreas como a matemática, agricultura e medicina. Sim, muita gente esquece ou nem sabe que o Egito fica na África. Mas também de fato os filmes e novelas com os seus atores brancos interpretando o povo do antigo Egito contribuem significativamente para essa confusão. Mas essa problematização fica para outro texto.
A escravidão está muito longe de ser algo que acontecia apenas na África. Muito pelo contrário. Há registro de escravidão em praticamente todas as culturas, nacionalidades e religiões, desde os tempos antigos até os dias de hoje. Mas não importa a civilização e não importa a época, a escravidão tem um único motivo: economia. O único propósito fundamental da escravidão é tirar o trabalho de alguém que tem poder econômico e impor esse trabalho em alguma outra pessoa. É um jeito fácil e extremamente eficiente de acumular riqueza, explorando outras pessoas. Esse é o motivo que levou à escravidão na África, na Europa, no Japão, na China, no Brasil ou em qualquer outro lugar. O que muda é a justificativa.
Várias e várias justificativas foram utilizadas para manter escravos: em alguns lugares era justificado que os escravos eram inimigos, prisioneiros de guerra. Em outros lugares, escravidão era justificada como uma condenação a criminosos ou a quem possuía muitas dívidas. E em alguns lugares, ser filho de escravos era justificativa para o tornar escravo. Na maioria dos povos que mantinham escravos na África, filhos de escravos eram consideradas pessoas livres. Em vários povos, a escravidão era uma punição temporária ou então um escravo podia trabalhar para comprar a sua liberdade. Também em muitos casos, havia alguns direitos para os escravos, como restrições ao tratamento que poderia ser dado a eles. Enfim, na África antes da chegada dos europeus, eram vários povos, várias culturas, várias maneiras diferentes de justificar a escravidão. Assim como todo o resto do mundo.
A grande inovação dos europeus para consolidar o comércio transatlântico de escravos foi uma nova e possivelmente inédita justificativa: o racismo. Passaram a justificar a escravidão pela cor da pele. Os africanos não chegavam na América como escravos sob a justificativa de que eram prisioneiros de guerra, criminosos ou devedores em seus locais de origem. Eles chegavam aqui como escravos sob a justificativa de serem negros. Eram considerados uma raça inferior aos brancos. Por isso não tinham direitos, por isso não tinham alma, por isso podiam tranquilamente ser tratados como coisas, e não como seres humanos.
Enfim, resumindo essa resposta dessa primeira pergunta, a escravidão tem um único motivo em qualquer lugar do mundo: é a mão-de-obra mais barata que se pode conseguir. No sistema em que vivemos, enquanto ela for permitida, ela existirá. Inclusive existe até hoje. O que muda é a justificativa utilizada para permitir essa prática. E o que a impede ao redor do mundo é a força da lei de cada país.
2. Os africanos vendiam escravos para os europeus. Por quê?
No início, quando os europeus chegaram e quiseram comprar os primeiros escravos africanos, os escravos vendidos eram em sua grande maioria prisioneiros de guerra. Esses prisioneiros eram geralmente de uma tribo vizinha inimiga, e não eram considerados como “um deles”. No caso em que os escravos eram criminosos, muitos eram vendidos porque dessa maneira não corriam o risco de ele voltar a cometer crimes naquela área, uma vez que esses povos africanos não tinham sequer um sistema prisional. Então não havia um obstáculo moral para que os africanos vendessem os seus escravos para os europeus. Mas ainda assim era muito provável que eles não fizessem nem ideia do que significaria para essas pessoas serem escravos no Novo Mundo. Como já disse, ser um escravo na África era muito diferente de ser um escravo na América.
Isso funcionou muito bem para os europeus, enquanto os prisioneiros de guerra e criminosos atendiam às suas demandas por escravos. Porém, ao longo dos anos, essa demanda cresceu muito. Eles precisavam cada vez de mais e mais escravos. Algumas coisas foram um problema para os europeus, como reis de tribos africanas que limitavam o comércio de escravos e alguns que se negavam completamente a negociar com eles. Aqueles que vendiam os escravos, eram pagos com bens valiosos para aquela época, o que incluía pagamento com armas de fogo, que não existiam na África.
Com isso, a venda de escravos, que era uma parte muito pequena da economia de povos africanos, passou a ser o negócio mais lucrativo de muitos deles, e ainda por cima aumentava muito o poder militar daqueles que vendiam os escravos. Com armas mais poderosas, eles criavam e venciam mais guerras, capturavam mais escravos, e atendiam à demanda européia. Ao mesmo tempo, o desbalanço de poder entre esses povos da África criava uma organização política extremamente instável, o que criou todas as condições favoráveis para que os europeus dominassem e colonizassem essas regiões, alguns anos depois.
Então novamente, nessa pergunta, a razão pelo qual os africanos vendiam seus escravos para os europeus era econômica. A princípio em baixa escala, porém passando a se tornar a principal atividade econômica de muitos povos devido à alta demanda do homem branco por escravos. O que criou uma desigualdade muito grande entre vários povos, instabilidade e ainda mais guerras, como uma bola de neve ficando cada vez maior.
3. Os europeus compravam escravos dos africanos. Por quê?
Primeiramente os europeus precisavam de mão-de-obra para trabalhar cultivando a terra que eles descobriram. Terras povoadas por habitantes nativos, porém que eles descobriram e se sentiram no direito de se apropriar. Nessa época, na maioria dos países europeus colonizadores, a escravidão de cidadãos no mesmo país, seja por crimes ou dívida, já era abolida há algum tempo. Então eles não tinham escravos “próprios” para enviar para a América, e as pessoas livres não estava