A Vizinha Perfeita: verdade, racismo e falhas na justiça
- João Falanga
- há 1 hora
- 6 min de leitura

Aviso: vai ter spoilers no texto.
Há dias carrego comigo um desconforto inquietante depois de assistir ao documentário A Vizinha Perfeita (Netflix), dirigido por Geeta Gandbhir. A produção revela, com crueza, uma tragédia que poderia parecer distante — mas que, à sua maneira, encarna feridas profundas: racismo, negligência institucional e leis que protegem quem já tem poder.
Um crime que dói na pele
O documentário se passa em Ocala, na Flórida, e gira em torno da morte de Ajike “AJ” Owens, uma mulher negra de 35 anos, mãe solteira de quatro filhos. Segundo reportagens, o conflito começou quando Susan Lorincz, sua vizinha, agrediu o filho de AJ, atirando patins nele, em um episódio que exalava racismo e intimidação.
O momento mais chocante acontece quando AJ, buscando explicações, bate na porta da casa de Susan — e é morta com um tiro no peito, disparado pela vizinha. A alegação de legítima defesa por parte de Susan foi contestada, especialmente porque a porta estaria trancada e a polícia já havia sido chamada. No fim, Susan foi condenada a 25 anos de prisão por homicídio culposo, negligência e agressões.
Autoridade, racismo e a chamada “lei de defesa”
Ao ver esse documentário, não posso deixar de me perguntar: por que levou tanto tempo para que a voz de AJ Owens ecoasse de forma tão explícita? A forma como o crime foi tratado pelas autoridades levanta críticas graves. A fatalidade reacende o debate sobre a lei conhecida como “Stand Your Ground”, que autoriza a autodefesa mesmo quando há alternativa para recuar — uma norma controversa e cheia de brechas.
É inaceitável que uma mãe jovem, uma mulher negra, tenha sido morta enquanto tentava dialogar com sua vizinha depois de um ataque ao seu filho. E mais: não parece coincidência que o desfecho fatal envolva uma arma, enquanto que as denúncias anteriores envolvendo Susan – ofensas racistas, filmagem de crianças, intimidação – pareciam não ter tido resposta à altura. A Justiça, ao condenar por "culpa" e não por homicídio doloso, deixa um gosto amargo de que a punição não correspondeu à gravidade moral do ato.
A diretora Gandbhir sabia disso e, ao narrar o caso com gravações reais (câmeras policiais, chamadas de emergência, câmeras de segurança), revela a violência institucional: não apenas o ato de violência isolado, mas um sistema que permitiu que essas tensões escalonassem até a tragédia.
Técnica documental: o poder das imagens cruas
Uma das escolhas mais potentes do documentário é o uso quase exclusivo de imagens reais e não dramatizadas: bodycams policiais, gravações de câmeras de segurança, ligações de emergência. Não há narração expositiva ou reconstituições fingidas — esse minimalismo reforça a sensação de que estamos assistindo a algo vero, visceral.
Do ponto de vista da fotografia, a estética é direta, sem grandes artifícios: predominam tons sóbrios, cenas noturnas, vislumbres urbanos, as viaturas da polícia, casas simples. Essa abordagem contribui para manter o foco no ato, não em espetacularização. A ausência de trilha sonora dramática reforça a sensação de naturalidade desconfortável — como se estivéssemos observando uma transmissão de vida real virando tragédia.
Já o ritmo merece destaque: o documentário não corre para conclusões fáceis. Ele apresenta os conflitos anteriores, os registros de denunciação, os áudios das chamadas, tudo de forma fragmentada, permitindo que a tensão se construa por meio das próprias vozes envolvidas. Essa construção lenta e deliberada intensifica a angústia: quando o crime ocorre, não é apenas um choque, mas o culminar previsto de hostilidade acumulada.
Crítica à postura das autoridades
O documentário expõe, sem rodeios, falhas graves das autoridades locais. Há relatos de que vizinhos já haviam denunciado o comportamento de Susan — agressividade, racismo, comportamento instável —, mas a intervenção institucional parece ter sido insuficiente. Enquanto isso, a vizinhança permanecia vulnerável, especialmente as crianças.
É desesperador perceber que uma mãe como AJ, que só queria respostas, teve a morte como retorno. A polícia chega após o disparo; os áudios das gravações são outras vozes correndo para apagar o estrago. Mas por que não chegaram antes? Por que não houve mediação real? Em vez disso, o sistema permitiu que a tensão entre vizinhas escalasse até a perda irreversível.
Também me incomoda a narrativa defensiva adotada por Susan e sua defesa. Alegar legítima defesa em um contexto onde havia uma relação de poder, histórico de hostilidade e até mesmo ameaças parece simplista demais. A justiça aceitou – ainda que parcialmente – esse argumento. Me parece um exemplo de como o peso da arma e do medo institucionalizado se alinha para proteger quem já exerce poder e reforça desigualdades estruturais.
Reflexões pessoais: racismo, vizinhança e empatia
Assistir a A Vizinha Perfeita me deixou desconfortável de muitas maneiras. Primeiro, porque me fez refletir sobre como a intimidade da vizinhança pode mascarar tensões raciais profundas — vizinhos que convivem, mas que são divididos por medo, preconceito, poder e desigualdade. O fato de um simples ato de buscar diálogo (bater à porta) ter levado à morte é simbólico: diálogo não bastou, não foi permitido a AJ.
Segundo, a forma como o documentário mostra as vozes de AJ — por meio de áudio, de registros de emergência —, me lembra que ela não foi só vítima de violência física, mas de apagamento. Asisses anteriores, os insultos, as gravações hostis, tudo estava lá, mas talvez nunca tinham sido plenamente escutados até agora. A produção de Gandbhir traz dignidade: a voz de AJ, ainda que fragmentada, é protagonista.
Terceiro, a responsabilização das autoridades me dá esperança, mas também deixa amargor. É importante que casos como esse venham à tona, para questionar leis como a “Stand Your Ground”, para pressionar por reformas. Mas ver uma sentença de 25 anos por homicídio culposo — e não doloso — faz com que eu questione se a justiça realmente compreendeu o tecido racial e moral que sustenta essa tragédia.
Limitações e pontos que poderiam ser mais profundos
Nenhum documentário é perfeito, e A Vizinha Perfeita tem também momentos em que poderia ir mais longe:
Contexto histórico e social: embora a produção apresente bem os episódios pontuais, faltou aprofundar mais o contexto racial da Flórida, especialmente a história de tensão racial em comunidades periféricas e o impacto sistêmico de leis de autodefesa. Uma análise mais robusta poderia enriquecer a narrativa, sublinhando que esse não é um crime isolado, mas parte de um padrão mais amplo.
Entrevistas das partes envolvidas: por optar por usar apenas imagens de câmeras policiais e áudios, a diretora abriu mão de depoimentos em profundidade com vizinhos, especialistas em direito ou ativistas antirracismo. Esses relatos poderiam dar camadas maiores à história, ainda que pudessem correr o risco de romantizar ou desviar o foco da vítima.
Soluções: o documentário expõe bem o problema, mas deixa a sensação de que falta oferecer caminhos concretos para mudança — seja por meio de política pública, ativismo comunitário ou reforma da legislação. Um encerramento mais propositivo não diminuiria o impacto emocional, mas acrescentaria um senso de urgência transformadora.
Por que vale assistir — e debater
Apesar dessas limitações, A Vizinha Perfeita é um documentário que merece atenção e reflexão profunda. Para mim, há três razões centrais:
Voz para a vítima: ele devolve humanidade a AJ Owens, não como estatística, mas como mãe, vizinha, ser humano.
Desconstrução de poder: escancara como leis, pré-julgamentos e racismo institucional moldam tragédias reais — e como esses elementos interagem para proteger quem tem arma e poder.
Estilo documental: a escolha de usar imagens reais sem dramatização sensacionalista é corajosa e eficaz — nos obriga a olhar a violência como parte da vida, não espetáculo.
Se estamos dispostos a falar de justiça, de racismo, de poder, precisamos de produtos como este. Não para nos distrair, mas para nos incomodar, para nos mobilizar. Assistir A Vizinha Perfeita é um convite: para questionar, para cobrar, para não deixar as vozes silenciadas ficarem apagadas.
Diria que terminei o documentário com uma mistura de tristeza, indignação e um senso de urgência. A história de AJ Owens não é apenas uma tragédia isolada — é um espelho das falhas de poder, de justiça e de empatia na sociedade. Como jornalista e como pessoa, me sinto convocado a compartilhar esse relato, a denunciar a estrutura desigual que permitiu que isso acontecesse e a defender vozes que continuam invisibilizadas.
Em última análise, “A Vizinha Perfeita” não é apenas um documentário: é um chamado à reflexão e à ação. E eu acredito que devemos responder.






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