“Tremembé”, da Prime Video: o retrato mais indigesto da romantização do crime
- João Falanga
- há 60 minutos
- 8 min de leitura

Quando a Amazon Prime Video lançou Tremembé, eu achei que sabia o que esperar: mais uma série sobre crimes reais, provavelmente pesada, talvez polêmica. Mas o que vi foi pior do que eu podia imaginar. E não, não é por ser uma produção brasileira — é pelo tom novelesco, pela estética de “entretenimento leve” aplicada a histórias baseadas em assassinos reais. O resultado é uma obra que romantiza monstros e transforma tragédias em espetáculo. Neste texto, explico por que Tremembé me incomodou tanto e por que considero essa tendência perigosa para o que chamamos hoje de true crime.
A surpresa (ruim)
Eu vou te confessar que foi uma surpresa. E não foi daquelas boas.
Quando anunciaram “Tremembé”, a nova série da #Amazon Prime Video, eu já estava com os dois pés atrás. Desde os primeiros teasers, trailers e sinopses, já dava pra ver que o tom seria problemático: a ficcionalização “livre” de criminosos reais, transformados em personagens de novela. Pensei: “isso vai ser ruim”.
E foi. Só que pior do que eu imaginava.
O que a Prime Video & Amazon MGM Studios entregou com Tremembé não é uma obra ousada, nem uma leitura crítica sobre o sistema penal, nem um retrato complexo da natureza humana. É uma série novelesca, caricata, e, o mais grave de tudo, romantizada — sobre pessoas que cometeram crimes horrendos, que destruíram vidas e famílias reais.
E aqui já deixo claro: minha crítica não é por ser uma produção brasileira. O problema não está em contar histórias nacionais, nem em revisitar casos reais. O problema é como isso é feito — e o “como” de Tremembé é o que há de mais raso, irresponsável e esteticamente equivocado que eu vi em muito tempo.
A estética da amenização
(foi isso que me chateou)
Dirigida por Vera Egito (que também assina o roteiro, ao lado de vários outros nomes, incluindo o jornalista Ulisses Campbell, autor de livros sobre esses casos), Tremembé se propõe a dramatizar o cotidiano da penitenciária de mesmo nome — conhecida como a “prisão dos famosos”, onde cumprem pena nomes como Suzane von Richthofen, os irmãos Cravinhos, Alexandre Nardoni, Elise Matsunaga, e até Roger Abdelmassih.
Ou seja: é um desfile de criminosos cujos nomes se tornaram sinônimo de violência brutal. E, ainda assim, a série escolhe tratá-los com uma embalagem de “drama pop” — uma espécie de mistura de Malhação com Orange Is the New Black, temperada com trilha sonora chiclete e enquadramentos de novela das seis.
Logo nos primeiros episódios, fica claro o tom: quando cada personagem é apresentado, surge uma cartela estilizada, uma música de fundo animada, e um ar de “superprodução”. É o mesmo truque usado em Esquadrão Suicida — só que aqui, o “esquadrão” não é de anti-heróis fictícios, e sim de assassinos reais.
E esse é o ponto mais perturbador: a série não apenas humaniza esses criminosos (o que, em si, poderia ser interessante, se feito com responsabilidade e profundidade), mas os romantiza. Transforma o presídio em palco de romances, comédias e fofocas. Dá trilha sonora brega para cenas de violência. E, em vez de questionar o horror dos crimes, parece mais preocupada em gerar empatia com os assassinos.
Há sambinha quando Suzane aparece. Há pop animadinho quando Elise Matsunaga conversa sobre o passado. Há reggae suave quando a série tenta “mostrar o lado humano” dos presos.
Desculpa, mas isso é insano.
Não dá pra colocar um pagodinho de fundo e tratar crimes como o assassinato dos próprios pais, a morte de uma criança, ou o abuso de dezenas de mulheres como se fossem capítulos de uma novela quente e envolvente.
“Mas eles são humanos…”
Essa é a primeira defesa que eu vejo pipocando nas redes — “ah, mas eles são humanos, têm direito à segunda chance”. Sim, são humanos. Sim, cumprem pena. Mas o que a série faz não é discutir reabilitação. Não é provocar reflexão sobre o sistema carcerário, sobre o perdão, ou sobre o peso da culpa.
É transformar tudo isso em entretenimento vazio, sem densidade, sem sensibilidade, e, acima de tudo, sem respeito às vítimas e suas famílias.
Quando você coloca o assassino da Isabela Nardoni num triângulo amoroso e insere uma música romântica de fundo, você não está promovendo debate. Você está amenizando o horror. Está “embelezando” o grotesco.
E essa é a tendência que mais me preocupa hoje: a do true crime pasteurizado, que transforma o sofrimento real em espetáculo, o criminoso em ídolo, e o crime em branding.
Um “Ryan Murphy genérico”
A série tenta copiar o estilo de Dahmer ou American Crime Story, mas sem o cuidado, sem o controle estético e sem o senso crítico. É puro exibicionismo: tudo parece construído pra viralizar, pra render meme, pra gerar burburinho nas redes — e não pra dizer nada relevante sobre o que está sendo retratado.
E isso fica evidente no texto. Os diálogos são artificiais, cheios de frases de efeito e piadinhas deslocadas. A montagem é frenética, mas sem propósito. E a direção parece perdida entre o que quer ser: drama psicológico? sátira? tragicomédia?
No fim, não é nada disso. É um amontoado de cenas mal costuradas, embaladas com trilha sonora equivocada e fotografia sem identidade — tudo envolto em um verniz de “glamour penitenciário” que, sinceramente, beira o mau gosto.
“Ah, mas as atuações…”
Algumas pessoas elogiaram as atuações, especialmente da Marina Ruy Barbosa, no papel de Suzane. Pra mim, é um caso clássico de confusão entre imitação e interpretação.
Marina acerta a postura, o olhar, a voz, mas entrega uma performance fria, automática, quase caricata. Ela parece mais preocupada em reproduzir a aparência da Suzane do que em compreender a complexidade do que está interpretando. Fica tudo linear, vazio, mecânico.
Mas vamos ser justos, tem coisa que se salva ali.
Entre o elenco, destaco positivamente a Carol Garcia (Elise Matsunaga), que consegue dar alguma nuance à personagem — talvez a única que parece entender a gravidade do que está encenando.

E o Lucas Oradowski, que faz um Nardoni contido, introspectivo, de presença silenciosa.
Mas são exceções em meio ao caos. O resto oscila entre o exagero e a indiferença. E o texto fraco não ajuda ninguém.
A romantização disfarçada de complexidade
A série tenta passar a imagem de que está “mostrando o lado humano” desses criminosos. Mas o que ela entrega é uma sequência de romances improváveis, cenas cômicas deslocadas e alívios sentimentais que só servem pra maquiar a brutalidade.
Os irmãos Cravinhos ganham ar de garotos incompreendidos. Suzane vira quase uma heroína trágica. Roger Abdelmassih, um alívio cômico grotesco — como se fosse um velhinho trapalhão e não um estuprador condenado.
A fronteira entre humanizar e glamorizar é muito fina — e Tremembé cruza essa linha sem o menor pudor. Transforma monstros reais em personagens “cativantes”. E, pior, faz isso com o mesmo tom “fofinho” de uma série adolescente.
A consequência é óbvia: quem não viveu a época dos crimes, quem não conhece os casos a fundo, pode assistir e acabar simpatizando com os criminosos. Daqui a pouco aparece camiseta “Free Suzane”, caneca “Cravinhos Lovers”, e por aí vai. A internet adora transformar vilão em ídolo. E a série entrega tudo de bandeja.
O entretenimento da dor
Eu entendo o fascínio pelo true crime. A curiosidade humana sobre o mal, sobre o que leva alguém a cometer atrocidades, é legítima. Mas há uma linha ética muito clara:
não transformar dor em entretenimento barato.
Carandiru, por exemplo, é um filme duro, cru, com momentos de leveza, sim — mas que nunca perde de vista a brutalidade do contexto. Ali, o espectador sente o peso da prisão, da desigualdade, da violência institucional. Há uma estética que respeita o tema.
Em Tremembé, nada disso. Tudo é higienizado, plastificado, instagramável. A prisão parece um set de novela. A violência é tratada com pudor, quase escondida — não por respeito, mas por conveniência.
E quando a série tenta “mostrar” os crimes, o faz de forma tão mal dirigida e superficial que o impacto se esvazia. As cenas de assassinatos, de abusos e de julgamentos parecem apenas recortes para contextualizar os dramas pessoais dos presos. É tudo sobre eles, nunca sobre as vítimas.
No fim, Tremembé se torna exatamente o que mais me incomoda no audiovisual atual: um conteúdo que lucra com a dor dos outros, embalado como entretenimento “inteligente”.
Covarde até o final
Depois de quase cinco horas de série, o espectador ainda é “presenteado” com um final covarde: um cliffhanger barato, deixando o destino de Suzane em suspense, como se fosse protagonista de um suspense da Netflix .
É a cereja no bolo da mediocridade: não apenas trivializa o crime, como transforma tudo em gancho pra próxima temporada. Porque, claro, nada dá mais audiência do que o mal embalado em formato de entretenimento fácil.
E aí eu me pergunto: pra quê? Pra quem é essa série? Pra quem quer “ver a Suzane por outro ângulo”? Pra quem acha que transformar assassinos em protagonistas é uma forma de “fazer justiça poética”?
Não é. É exploração pura. É capitalizar em cima da tragédia. É dar palco a quem nunca mereceu holofote.
“Nem documentário é verdade” — e daí?
Alguém pode dizer: “ah, mas se você quer a verdade, veja documentários”. Pois é, nem documentário é 100% verdade. Todo recorte narrativo é uma escolha. Mas entre manipular pra dar contexto e manipular pra embelezar o criminoso, há um abismo.
O problema não é contar — é como contar. E Tremembé escolhe o caminho mais cômodo, mais comercial e mais apelativo: o da dramatização boba, da trilha chiclete e dos personagens sexualizados. No fim, nada sobra. Nem reflexão, nem crítica, nem arte.
Só uma sensação amarga de que o audiovisual brasileiro desperdiçou uma oportunidade de discutir algo sério — pra fazer uma versão glossy ("Versão glossy" refere-se a um acabamento com alto brilho, reflexivo e lustroso, aplicado a diversos produtos como impressões fotográficas, maquiagem e cabelo) da barbárie.
O verdadeiro crime
O verdadeiro crime de Tremembé não está no roteiro, nem nas atuações. Está na falta de respeito com a memória das vítimas e com o público que ainda acredita que a ficção pode ter responsabilidade.
A série transforma assassinos, pedófilos e estupradores em figuras “complexas”, “mal compreendidas”, “românticas”. E, com isso, contribui pra uma cultura perigosa: a da banalização da violência.
Quando o mal vira entretenimento, o horror vira piada, e o criminoso vira celebridade — perdemos o senso de medida. E é isso que Tremembé faz. Com um sorriso, um sambinha e uma fotografia “fofa”, ela nos convida a simpatizar com monstros.
E o pior é que dá certo. A série já está sendo comentada, elogiada, e, claro, assistida. Porque, no fim das contas, o crime vende. E a Prime Video sabe muito bem disso.
A minha nota
Se fosse pra dar uma nota, eu daria 3 de 10. Não só pela execução fraca, mas pela irresponsabilidade moral da abordagem.
Sim, é possível fazer ficção sobre crimes reais. Sim, é possível discutir culpa, punição e redenção sem transformar criminosos em protagonistas de novela. Mas Tremembé não faz nada disso. É uma série covarde, oportunista e, acima de tudo, superficial.
Pra quem gosta de true crime de verdade, o que se espera é uma obra que investigue, que questione, que incomode. Não uma que banalize.
Tremembé é um sintoma do nosso tempo: a era em que o sofrimento alheio virou produto, a empatia virou marketing e o crime virou conteúdo. E talvez o mais assustador não seja a série existir — mas o fato de tanta gente assistir sorrindo, achando “legalzinho”, achando “entretenimento”.
E é por isso que eu repito: Tremembé não é só ruim como série. É ruim como ideia. É ruim como postura. É ruim como mensagem.
Porque, quando a ficção começa a passar pano pra assassinos reais, o que morre não é só o bom senso — é a noção de humanidade.
Que bom que o audiovisual brasileiro está produzindo mais. Mas que pena que, em vez de provocar, prefere confortar. Que pena que, em vez de encarar o horror, prefere colocar uma trilha sonora animada por cima dele.


