Fraude Musical Elevada: Quando a Inteligência Artificial e Bots Transformam Streaming em Crime
- João Falanga
- há 15 minutos
- 6 min de leitura

O que aconteceu
Em 4 de setembro de 2024, o Departamento de Justiça dos EUA (Distrito Sul de Nova York) anunciou a acusação contra Michael Smith (a pessoa da foto acima), músico da Carolina do Norte, por envolvimento em um esquema de fraude de streaming musical auxiliado por inteligência artificial (IA).
Segundo a acusação, Smith criou centenas de milhares de músicas geradas por IA e usou “bots” — contas automatizadas — para fazer com que essas músicas fossem transmitidas bilhões de vezes em plataformas de streaming como Spotify , Apple music , Amazon Music e YouTube .
A fraude teria rendido mais de US$ 10 milhões em royalties obtidos de modo ilícito.
Como cheguei a esta notícia? A explicação está no próprio processo formativo em Ciências de Dados. Durante o curso, somos constantemente treinados a realizar análises estatísticas sobre métricas digitais, observando variações em indicadores de audiência e de engajamento.
Esse trabalho envolve desde a identificação de outliers até a avaliação da consistência de séries temporais e correlações entre variáveis.
Casos de manipulação intencional de dados — como a criação artificial de grandes volumes de seguidores para transmitir uma falsa percepção de relevância — eram frequentemente apresentados pelos professores como exemplos práticos. O objetivo era desenvolver a capacidade crítica de detectar padrões suspeitos e diferenciar métricas genuínas de indicadores inflados.
Como funcionava o esquema
Alguns pontos importantes para entender o mecanismo da fraude:
Smith criava várias contas falsas (“Bot Accounts”) nas plataformas de streaming, programadas para tocar repetidamente as músicas que ele possuía.
Para evitar que qualquer música em particular se destaque demais (o que poderia chamar atenção para possível fraude), ele espalhava streams por centenas de milhares de faixas. Assim, cada música individual tinha um número “menos evidente” de reproduções.
Para obter tantas músicas, Smith recorreu à parceria com uma empresa de IA (“CC-3”) e um promoter (“CC-4”), que forneciam milhares de músicas geradas artificialmente com regularidade.
As músicas de IA muitas vezes estavam com nomes estranhos ou aleatórios, como sequências de letras e números ou nomes de “artistas” fictícios, justamente para disfarçar a origem automatizada.
A acusação legal
Ele foi indiciado em três crimes federais:
Conspiração para fraude eletrônica (wire fraud conspiracy) – uso de meios eletrônicos para enganar; pena máxima de até 20 anos.
Fraude eletrônica (wire fraud) – efetivamente cometer a fraude; pena também de até 20 anos.
Conspiração para lavagem de dinheiro (money laundering conspiracy) – para disfarçar ou movimentar os lucros ilegítimos; também pena de até 20 anos.
Reflexões e impactos
O caso levanta uma série de questões importantes para a indústria musical, para plataformas de streaming, assim como para os reguladores:
Integridade dos sistemas de streaming: Plataformas como Spotify e Apple Music dependem de métricas de uso (quantidade de streams) para determinar quanto pagar de royalties. Se essas métricas forem manipuladas, artistas legítimos não só perdem receita, mas também visibilidade.
IA como ferramenta ambígua: A inteligência artificial pode ser usada para inovar, gerar sons novos, ajudar na composição etc. Mas, como mostra o caso, ela também pode ser instrumentalizada para fraudes. O desafio é distinguir o uso legítimo do abuso.
Detecção e prevenção: Plataformas de streaming provavelmente precisarão investir mais em tecnologia e auditoria para detectar esse tipo de fraude — bots, padrões atípicos de streaming, falsificação de identidades, uso massivo de contas automatizadas etc.
Aspectos legais internacionais: Embora esse seja um caso nos EUA, serviços de streaming operam globalmente. Há implicações sobre jurisdição, legislação de direitos autorais em diferentes países, cooperação internacional em casos de fraudes digitais.
Ética e consequências para artistas de verdade: Artistas que criam músicas “de verdade” (com composição, performance, produção humanas) dependem desse ecossistema de streaming para viver. Fraudes como essa desviam recursos que deveriam ir para eles.
Conclusão
O caso de Michael Smith é marcante porque parece ser uma das primeiras grandes ações criminais envolvendo fraude de streaming musical facilitada por IA. Mostra como a tecnologia pode tanto expandir horizontes quanto abrir brechas para abusos. As plataformas, artistas, reguladores e o público precisam ficar atentos: garantir uma remuneração justa, proteger a integridade da música e equilibrar inovação com responsabilidade será cada vez mais essencial.
Os dados são do portal do site do Distrito Sul de Nova York, Procuradoria dos Estados Unidos:
O que o caso dos EUA revela para o Brasil e a América Latina
Um alerta vindo de fora
O recente caso do músico norte-americano Michael Smith, acusado de usar Inteligência Artificial (IA) e bots para fraudar bilhões de streams em plataformas digitais e lucrar mais de US$ 10 milhões em royalties, repercute muito além dos Estados Unidos. Para nós, no Brasil e na América Latina, a situação funciona como um alerta vermelho: o ecossistema digital da música está vulnerável a manipulações tecnológicas, e as consequências podem afetar diretamente artistas locais, gravadoras independentes e até consumidores.
Por que esse caso importa para o Brasil?
1. Mercado digital em crescimento
O Brasil é hoje o 9º maior mercado de música no mundo (dados da IFPI). Plataformas como Spotify, Deezer e YouTube são responsáveis por mais de 80% da receita musical nacional. Isso significa que qualquer fraude nesse sistema impacta diretamente o bolso dos artistas brasileiros.
2. Fragilidade regulatória
Enquanto os EUA têm investigações robustas do Departamento de Justiça e do FBI, na América Latina os mecanismos de fiscalização digital ainda são frágeis. Casos de fraude em streaming dificilmente chegam às manchetes ou viram processos criminais. Isso cria um terreno fértil para golpistas explorarem falhas.
3. Concorrência desleal
Artistas independentes no Brasil já enfrentam dificuldade para ganhar visibilidade. Se esquemas com IA inflarem números artificialmente, músicos legítimos serão empurrados para baixo nos algoritmos das plataformas, perdendo alcance e, consequentemente, receita.
Sendo que já li que alguns artistas do mainstream brasileiro — aqueles já estabelecidos e constantemente empurrados para o topo das paradas — têm recorrido a artifícios duvidosos para inflar artificialmente o desempenho de suas músicas nas plataformas de streaming.
A manipulação não seria novidade, mas o que chama atenção é a escala: artistas que já contam com ampla exposição na mídia e investimentos milionários ainda buscam inflar números para reforçar narrativas de sucesso.
Um olhar técnico ajuda a revelar essas distorções. Métricas como taxa de skip (pulos rápidos logo nos primeiros segundos da faixa), picos anormais de execuções em horários atípicos e concentração desproporcional de streams em regiões geográficas específicas são fortes indicadores de comportamento artificial.
Também vale observar desbalanceamento entre o volume de ouvintes únicos e o total de execuções — quando poucos perfis “reproduzem” em excesso uma mesma faixa — além de padrões de repetição que fogem do consumo humano normal.
Há relatos de que até as próprias plataformas já investigam casos suspeitos, o que reforça a gravidade do problema. Se comprovadas, tais práticas configuram uma fraude não apenas contra o mercado, mas contra o público, que tem sua percepção manipulada por métricas infladas e campanhas enganosas.
Impactos diretos para artistas latino-americanos
Perda de receita legítima: Se royalties são pagos a músicas falsas, sobra menos dinheiro no bolo para os artistas reais.
Menor visibilidade: Algoritmos favorecem faixas com mais streams. Bots empurram músicas fraudulentas para playlists e recomendações, roubando espaço de artistas humanos.
Desvalorização do streaming: Quanto mais o público desconfiar da autenticidade das métricas, menor será a confiança em plataformas digitais como forma justa de remuneração.
O que pode ser feito no Brasil e na região
1. Fortalecer fiscalização
O ECAD e associações de direitos autorais poderiam criar núcleos de monitoramento antifraude em parceria com plataformas.
É urgente que Ministérios da Cultura e órgãos reguladores de comunicações discutam normas específicas para streaming.
2. Pressão sobre plataformas
Spotify, Deezer, Amazon e YouTube precisam de protocolos de transparência na América Latina, como relatórios regulares de detecção de bots e remoção de conteúdos fraudulentos.
3. Apoio a artistas independentes
Criar fundos e editais para artistas que comprovadamente sofrerem perda de receita devido a fraudes.
Incentivar plataformas locais de música a investir em curadoria humana, reduzindo dependência cega de algoritmos.
4. Educação digital
Artistas, selos independentes e produtores precisam aprender a identificar propostas suspeitas, como “empresas” que oferecem plays garantidos em troca de pagamento.
Reflexão ética e cultural
A música na América Latina é identidade, cultura e resistência. Se permitirmos que IA e bots transformem o mercado em um campo de manipulação digital, corremos o risco de enfraquecer vozes autênticas, especialmente de artistas periféricos e independentes que já enfrentam enormes barreiras de entrada.
Esse caso mostra que não se trata apenas de “fraude financeira”: é também uma disputa sobre quem será ouvido no cenário musical global.
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