L. do D.
Reparando, às vezes, no trabalho literário abundante ou, pelo menos, feito de coisas extensas e completas de tantas criaturas que ou conheço ou de quem sei, sinto em mim uma inveja incerta, uma admiração desprezante, um misto incoerente de sentimentos mistos.
Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má — e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezes não e inteiramente má —, sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. E como um filho; é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são.
E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também.
Mais valera, pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir.
Penso se tudo na vida não será a degeneração de tudo. O ser não será uma aproximação — umas vésperas ou uns arredores.
Assim como o Cristianismo não foi senão a degeneração bastarda do neoplatonismo abaixado (...) a judaização do helenismo falso, romano, assim nossa época [...] é o desvio múltiplo de todos os grandes propósitos, confluentes ou opostos, de cuja falência surgiu a era com que faliram.
Vivemos um entreacto com orquestra.
Mas que tenho eu, neste quarto andar, com todas estas sociologias? Tudo isto é-me sonho, como as princesas da Babilónia, e o ocuparmo-nos da humanidade é fútil, fútil — uma arqueologia do presente.
Sumir-me-ei entre a névoa, como um estrangeiro a tudo.
Vinha humana desprendida do sonho do muro e navio com ser supérfluo à tona de tudo.
s.d.
― Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
― "Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.
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